Custa a crer que a sociedade brasileira, com o grau de acesso e conhecimento que hoje desfruta, receba com tamanha passividade as primeiras medidas do que se está chamando eufemisticamente de “ajuste fiscal”: pois, ajuste de verdade, pressupõe todos os lados da questão (custos, despesas, receitas e dívidas) de forma concatenada para que os remédios não matem de vez o doente, como na zona do euro.

Notadamente quando o próprio titular da economia se encarrega de avisar que serão medidas de impacto sobre o crescimento da produção global e da renda pelos próximos anos, ponderando, todavia, que o sacrifício terá, como fruto virtuoso, a volta do investimento e a redenção da economia.

Será?

Como?

Ora, se é necessário tal sacrifício se abata sobre a economia das empresas e dos indivíduos, por que a parte que interessa do governo (em todas as suas instâncias) está fora do ajuste?

No caso federal, com 39 ministérios, para que fosse crível, o ajuste de custos e despesas deveria começar com um 40º ministério: o ministério de reforma administrativa e gerencial do mastodonte existente!

Não vale o faz de conta de cortar orçamentos: isto é como cortar vento, eis que se fala de gastos a realizar, sem entrar no mérito da qualidade e da necessidade do gasto.

Afinal, o que os governos têm feito e fazem (em todos os seus níveis de competência e atribuições) está sendo feito da melhor forma e com a produtividade que se reclama de todos os demais agentes da economia?

Note-se que também nos governos estaduais recém-empossados (mesmo os que são de continuidade), primeiramente se contingenciam os orçamentos (ou seja, congela-se uma parcela do orçamento, ou seja, se contingencia “vento”). Mas, ressalva-se, que assim que houver a retomada das receitas (como reflexo da retomada das atividades econômicas), se descontingenciarão novamente os recursos de vento (sic) que se estão sublimando…

Assim, não se entra no mérito e na qualidade do gasto! Retornando (ou aumentando) a receita, retoma-se a despesa!

Todas as despesas e todos os custos? Então se gasta assim tão bem o que se arrecada?

Em paralelo, mantêm-se as estruturas de cargos comissionados e – pior de tudo – sequer se faz qualquer menção a ajuste ou modernização para fazer “mais com menos” recursos humanos – uma forma de fazer de modo mais produtivo, com mais tecnologia e (até…) de dinheiro, o que se está fazendo para servir (sic) aos contribuintes.

Mas, dirão alguns, “mais de 2/3 das despesas dos governos são de cunho financeiro”, ou seja, decorrentes de dívidas, resultantes dos descalabros de despesas correntes financiadas pela colocação de papéis (dívida bruta): assim, “cortar despesas correntes contribui pouco”, eis que é “impossível mexer no endividamento bruto já contratado”…

Pode-se, sim, entretanto, repensar o que se pode fazer para esterilizar o estoque da dívida bruta já existente.

Por que não permitir, por exemplo, que os compradores da dívida bruta (do país e do exterior) usem parcela do valor dos títulos que entesouraram, para subscrever capital de SPE das concessões (plenas e das concessões sob PPP) que todos os governos têm a necessidade de realizar, para destravar os gargalos da infraestrutura social e econômica do país?

Quem comprar com deságio o estoque da dívida subscreve pelo valor ao par, o capital das SPE exigidas para operar os projetos de concessão demandados pela economia.

Ou, via a Bolsa Mercantil e de Futuros, adquirir em leilão os Direitos Emergentes de Concessão (DEC) – previamente formatados e discutidos por meio de consultas e audiências públicas, via o Poder Concedente ou a partir das Propostas de Manifestação de Interesse (PMI) oferecidas pelo setor privado do país e do exterior – usando como meio de pagamento os papéis de parcela da dívida bruta emitida pelo Tesouro Nacional, desde que sejam obrigações com prazos de colocação acima de 10 anos ou mais, de forma a torná-los compatíveis com os prazos de retorno das concessões a serem estimuladas?

Com isto, se estaria trocando dívida pública sem lastro por participações com retorno escorado em ativos de concessões e concessões sob PPP!

Por esta via, uma condicionante básica estaria sendo provida: o Governo arrocha, mas dá a sua carga de sacrifício, ajustando despesa corrente (com maior produtividade no fazer o que lhe atribuídos constitucionalmente), assim como trocando dívida bruta por ativos com retorno com lastro real. Ou utilizando este mecanismo para subscrever capital de empresas públicas ou para investimentos como o pré-sal, ferrovias, portos, hospitais, saneamento e tantas outras.

Senão, como o mercado de futuros pode sinalizar para taxas mais bem comportadas de inflação e juros reais, se quem paga o ajuste fiscal estará se defrontando com juros reais maiores, carga fiscal mais elevada, e sem qualquer garantia que se estará criando melhores oportunidades de ganhos efetivos e cabais daqui a 24 ou 36 meses?

Isto é racionalidade ou é mera especulação sombria com as expectativas que, de antemão, já se sabe que deverão nascer frustradas?

Ora, exigir sacrifícios “dos outros” e continuar com a mesma estrutura de gasto corrente e financeiro, sem sinalizar com alternativas para destravar os investimentos em infraestrutura, é mais do mesmo em enxugar gelo e esperar por um choque externo positivo nas commodities para voltar a colher mais receitas de vento, escrituradas, sem contrapartida efetiva e real de caixa.

Assim, o nó fiscal permanecerá atado.